Depois que te contei da tartaruga

Auto Imune
4 min readMay 22, 2020

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Foi depois que contei pra ela da tartaruga que eu comecei a enlouquecer pra valer. A tartaruga era enorme, como a morta na areia semanas antes, até então a maior que já havia visto. 24 centímetros mede meu palmo. Curvo minha mão fazendo um “c” esticado e ao contrário, buscando a forma da cabeça de uma tartaruga. Afasto os dedos uns dos outros até o limite antes de perder a perfeição do molde e pronto: a dela era deste tamanho. Silêncio é pré-requisito de qualquer magia, pode-se anunciá-la e passá-la mas assim o poder se esvai até o próximo contato regresso, que é quanto a emanação já é tão habitual que não é difícil encontrar outros seres dispostos a repor o mistério doado. E é nas pedras, bem depois da prainha que fica na trilha de quem segue pelo morro direito que delimita a praia maior, que busco esse recarrego.

Da pedra escolhida aviste apenas os humanos que dentro da água, qual patos, ou que na areia da praia maior, ao longe, qual formigas.

Aquiete-se. Esqueça que anseia por visitas. Qualquer barata d’água é tão curiosa quanto um gato. A barata lhe subirá pela extremidade em contato com a pedra. Ou baratas. É necessário que não espere por ela. Ou elas. Qualquer anseios as assusta. Mova primeiramente sempre o olhar, assim não afasta aquelas dezenas de patinhas enfileiradas. Você provavelmente a assustou no primeiro contato.

Não se preocupe em feri-las; não o conseguiria mesmo que tentasse.

Repare como elas sempre anunciam a chegada, apenas não se assuste. Mova lentamente o olhar em direção à coceirinha na extremidade adentrada e observe que o bichinho para — nesse momento, olhe o mar e veja a curiosidade das tartarugas quanto a você: cabeças que sobem e descem, quase na pedra em que está, fazendo aqueles pequenos círculos de água quando levantam, abaixam, e também alguns metros adiante, aos lados, por todos os lados aqueles pescocinhos a procurar você. É maravilhoso ver e isso por si só já te repõe algo do mistério — deixar de observá-los e esquecer que eles ali, voltar lentamente o olhar para os seres de outras vivências e formas, pode ser o mergulhão ou a gaivota que sabidamente o observam do alto e sabem muito bem a hora de descer, não confiando na reação que o medo do seu bico pode gerar em um humano que, para receber a visita, necessariamente deve estar distraído e que poucas vezes chegará a saber que o quão mais próximo da boca estiver agora a barata, mais receberá olhares curiosos das várias famílias de tartarugas, exércitos de baratas d’água, alguns siris, golfinhos ou qualquer outro curioso da vida marinha que o perceba. Pois todos novos que ali são, despertam a curiosidade dos seres ao redor.

Esteja para que reconecte-se.

Saiba que bons modos sociais irão poluí-lo.

É nessa loucura de pedra onde me exibo sem interesse pelo como sou visto, que redespertamos, eu e eles, a curiosidade das outras espécies por mim. Logo, por nós.

Não estrague.

E reconheça outros refúgios.

Urubus sempre estarão a espreita, semi conduzidos por massas de ar quente, mais volumosos na medida em que mais numerosos e enfartados forem aquelas daqui formigas que avisto na areia junto a barracas coloridas. Eles sabem que qualquer carne fria pode ser sua mas se contentam com pequenos lixos pois são vários e a liberdade da gaivota frente ao vento é algo que apenas avistam. Pequenas pombas, pobres seres obrigados a sempre movimentar o pescoço a cada passo em terra firme, correm por fora nessa disputa, passam longe dos peixes disputados na beira das praias e acabam por ficar com as migalhas dos restos e sem se importar muito em dividi-las com os recém regressos pardais. Andavam sumidas, belezuras. Desde a infância não os via. Em minha terra natal tiveram seus territórios invadidos por pombas e mesmo aqui não deram as caras durante alguns anos. Que bom revê-los! Pombas, desculpem a forma como falo de vocês. É que estão em relação direta com a nossa desordem mais evidente e esse bug em seu andar-pescoço se assemelha demais ao personagem do videogame quando bate-cabeça no fim do cenário. As julgo mal por vê-las tão humanizadas quanto eu (ou nós que empombecemos?).

Vírus e bactérias de todos os tipo nos percebem, nos colonizam. No mais, se aproximam de nós apenas os seres já subjugados e os interessados em restos e excessos.

Eu não durmo nas minhas pedras, assim ficando à completa mercê dos olhares curiosos dos seres, pois tenho receio que na morte que anseio — ser recolhido e devorado em menos de segundo por um gigante abissal dos mares, que sairá, me pegará e sem ser visto retornará ao fundo — não venha o crocodilo milenar que me esmagará inteiro com meio ou dois dentes, e sim aquela serpente secular que me puxará e me abraçará, mantendo-me ali vivo o tanto quanto possível.

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Auto Imune

Autoimunidade é a falha em uma divisão funcional do sistema imunológico que resulta em respostas imunes contra as células e tecidos do próprio organismo.